segunda-feira, outubro 31, 2005

Romanos

O menino recém-alfabetizado assiste ao filme que o pai alertou que seria bom ver: “A Bíblia”. Companheira de luta, a sua mãe está lá tricotando uma futura blusa de lã e o guri resolve perguntar o que significa aqueles ‘Is’* depois da palavra ‘parte’, quando o filme volta do comercial.

- Manhêêêê! Que é aquele ‘I’ ali?
- Onde?
- Ah, agora sumiu, pera lá.
- ...
Minutos depois, novas indagações.
- Ó, prestenção ali. Ó viu? Parte íí. Que é?
- Ah, é numeral romano. Parte 2. ‘Í ‘é 1 e dois ‘Is’ é dois.
- Ah tá...
Mais um tempinho.
- Manhêêêê! Agora é a parte quatro e virou ‘í vê’!
- É que agora muda. O cinco é o ‘V’, quando é quatro, é ‘I’ depois ‘V’
- Mas aí não é 15?
- Não, quando vem antes você diminui. A parte seis é ‘V’ mais ‘I’. Mas só dá pra repetir três vezes. No nove é ‘I’ depois ‘X’
Segue o bonde.
- Manhêêêê! Como que cabe tanto bicho na arca do Noé? Eles não comem os outros? Como que não brigam?
- (suspiro) Deus que deixou eles calmos...
- Não era mais fácil salvar eles?
- ...
- Esse filme vai até quantas partes?
- Sei lá. Assista e me conta..
Como a mãe estava sem paciência, ele resolveu não perguntar mais e ficou de olho no filme loco. Para sorte de ambos, o filme não passou da parte 13...

* No começo da década de 80, a Globo usava uns caracteres toscos para indicar as partes. Por algum motivo qualquer, usavam numerais romanos para indicar em que ponto estava o filme. Engraçado que eles não mostravam separado apenas “parte ‘I’ ou parte ‘II’ e assim por diante. Mas ficava assim: Parte I II III IV V VI, quando era a parte seis. Pelo menos os filmes dificilmente passavam da parte quatro.

Canhoto

Se você não sabe, sou canhoto. E como todo sujeito que usa a sinistra, demorei pra entender o funcionamento de tesouras e abridores de latas. Mas tenho uma habilidade com a mão direita que vocês, malditos destros, não possuem com as suas mãos esquerdas. Tanto que jogo bulica com a mão direita e uso setra com as duas mãos. Apoiando com a mão direita pra ir longe e com a esquerda para pedradas colocadas. Um adendo: segundo o Houaiss, setra é um regionalismo catarinense para atiradeira/estilingue e bulica não existe e devo traduzir para bolinha de gude...

Mas uma coisa diferente aconteceu na hora de ler. E preciso da ajuda dos leitores canhoteiros para ver se a mesma coisa aconteceu com eles. Nos primeiros momentos, nos primeiros meses de 81, antes de virar automático ler da esquerda para a direita, eu demorava um tempo lendo da direita para a esquerda. Se não fazia sentido, tentava da maneira que o ocidente aprendeu a ler e a escrever. Sorte que eu não topei com frase alguma escrita em idioma estrangeiro pra me bater até achar que desaprendera a arte da leitura.

Um exemplo típico era eu ler uma plaquinha que tinha no painel do caminhão alertando para o uso do cinto de segurança que eu primeiro lia da maneira errada e só depois de ver que ‘açnaruges’ não existia, tentava por outro caminho.

Se bem que isso pode não ter nada a ver com ser canhoto ou não...

Primeiras letras, primeiros números

Durante grande parte do ano de 81, minha mãe lutava pra ensinar as lições da escola para o meu irmão e eu ficava de ‘socopes’ nas conversas e nas explicações. Como abandonara o pré, não fazia muito mais do que escutar as explicações da dona Voninha e desenhar em papéis na área educacional.

Logo eu aprendi a ler e a fazer contas sozinho. Para ler, ficava folhando as revistas e especulando pra minha mãe como eram ‘aquelas’ letras. Nas contas, meu pai ajudava e exigia. Logo passei a somar e a diminuir com até três números, ou uma centena, como aprendi mais tarde.

Em viagens de caminhão, eu chegava ao cúmulo da chatice de pedir pro seo Maneco andar com o 1113 mais devagar pra eu poder ter tempo pra ler as placas nos lados da estrada e os dizeres dos pára-choques. Com as placas dos outros caminhões ele pedia pra eu somar pra ver no que dava.

O lado ruim foi que eu aprendi a ler e escrever com letras de forma. Até hoje tenho uma letra lazarenta, principalmente sentida pela ausência das cobrinhas, caracóis, pontilhados, tracejados das cartilhas do pré e da primeira série.

O Ferrorama...

Na casa anterior eu ganhara um Ferrorama de presente e poderia montar os trilhos em qualquer lugar da casa gigante. Lembro que ficava um tempão nesta brincadeira, gastando pilhas e pilhas para fazer o trem, literalmente, andar.

Nesta nova casa, só dava pra se fazer isso na sala. Em um destes vários monta-e-desmonta, perdi duas partes e não pude mais completar o treco inteiro. Depois de um tempo sem mexer naquilo, triste demais pra ver a pistinha incompleta, resolvi fazer experiências com o que tinha. Forçava o trem a empurrar coisas e enfrentar subidas cada vez mais íngremes.

Sem mais o que fazer ou o que inventar, fui estragando os trilhos, perdendo os vagões até desaparecer todos os vestígios do tal brinquedo. Em 83 nos aprontávamos para sair da casa, em nova mudança e, estavam movendo a estante para colocar no caminhão, quando caíram dois pedaços de plásticos no chão.

Eu não me atentei muito ao fato num primeiro instante, mas quando fui levar um dos copos de chopp da coleção da minha mãe, resolvi ver o que era aquilo.Por uma ironia do destino, eram os dois pedaços de trilhos que faltavam para completar o Ferrorama.

Devo ter ficado uns bons minutos olhando com cara de bobo praqueles empoeirados trilhos e suspirei como se fosse um velho, que havia perdido uma parte importante da vida por burrice. Depois, sacudi a poeira e toquei a vida.

"Fragile"

Para finalizar os campos de futebol isolados desta fase, chegamos ao que não tinha nome definido e que ficava bem perto do Colégio Santa Terezinha. Também conhecido como colégio das freiras, este foi um lugar onde eu fui muito feliz na oitava série e primeira e segunda do segundo grau. Mas aí é uma história que demora pra relatar aqui. A adolescência tá longe. Ainda falta falar do campo da escola do meu primário.

Neste campo, meu irmão quase teve o apelido trocado de Fefedo pra ‘vermelhinho’ e ‘fragile’. O primeiro depois que um cara mais velho convidou ele pra jogar em seu time quanto vestia apenas roupas vermelhas e o segundo por causa de uma marca de camisas que ele usava. Acho que foi de alguma promoção qualquer, pois ele tinha mais de uma com este nome estampado em letras bizarras.

Neste campinho os times variavam bastante, com crianças de oito, dez anos jogando com caras ‘de maior’. Ganhavam estes últimos por poder fazer jogadas espetaculares e os menores pra ficarem espertos pra vida, quando enfrentavam seus pares. E ganhavam todos, pois neste campo a grama crescia bastante e entendemos o que significava campo pesado, quando os narradores falavam isso na TV.

Quando chovia, uma poça gigante se formava e a diversão acompanhava o tamanho do banhado. Era um tal de neguinho se jogar na água, que aquilo deixava de ser futebol – coisa séria – pra virar brincadeira.

Neste lugar que aprendi o que significava ser bi, tri, tetra, etc. Em uma disputa de duplinhas de pênalti, dois caras eram muito melhores que os outros e começaram a ganhar seguidamente. Com as progressivas vitórias, passaram a dizer que eram hepta, octa, ‘nona’ e deca campeões.

Com o preciosismo, tão comum do esporte, eles não capricharam e não fiquei sabendo o que era uma equipe onze vezes campeã seguida. Mas aprendi a regra que dizia que precisava ser campeão de maneira seguida pra poder adotar esse tipo de nomenclatura, mas não soube o motivo que relevavam o tricampeonato da seleção em copas do mundo.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Porrada!

Antes de chegar às vias de fato, só tive alguns empurrões no pré e com meu irmão mais velho e nunca dei ou levei um soco de verdade nestas horas.Como acontecia várias vezes, passávamos as férias na casa da minha avó paterna.

Eu estava na minha, brincando com meu mais novo presente, uma bola verde e branca número 2 novinha em folha, na praça que ficava em frente. O local era feito por petit pavê, que formava um mar de caminhos que formavam ilhas de gramados. Em um deles, ao lado do coreto e bem em frente à igreja estava eu, ensaiando minhas embaixadas.

Como a bola acabara de sair do forno, eu queria brincar apenas no gramado pra não riscar muito. Dois piás estavam de bobeira num dos bancos e resolveram se aproximar. Um deles era mais velho e o outro tinha o meu tamanho. O menor chegou perto e, com um chute, tirou a bola pra mim. Para minha sorte, ele chutou errado e mandou a pelota para os lados da casa da minha vó. E melhor, não acertou a rua que descia para uma ladeira, cruzaria uma rua movimentada e outra lareira mais íngreme.

- Ô Piá, por que fez isso!
- Calaboca!
- ...
- Que cê falou?
- Vai tomar banho...
- Vem fazer!

E logo cresceu uma mão, vindo em direção ao meu nariz, sem chances de eu evitar o soco de direita. Num primeiro momento, você sente uma tontura esquisita, logo depois seu nariz parece aumentar de tamanho e parece que a cabeça vai pra frente e pra trás sem sair do lugar.

Doeu, o sangue ferveu, os punhos se fecharam e, logo depois, como por instinto, a mão esquerda acertou o olho do piá, que se assustou. Sem pestanejar, acertei outro soco na boca, e pra finalizar, um de direita, mais parecido com um tapa que um soco, na orelha.

Eu acho que levei muita sorte, pois nunca mais acertei três socos seguidos nas três primeiras tentativas em uma briga. Mas tudo bem, faz parte. Depois dos socos, virei as costas, fui atrás da bola e entrei chorando na casa da Vó. Como era de tarde, só a Muda, empregada de anos e anos da dona Jaci, estava em casa e limpava a sala. Nem prestou atenção quando eu entrei no quarto e deitei, pra dormir com raiva do mundo.

Todas as facetas do esporte

Ao recordar dos jogos envolvendo jogatina, lembrei que foi naquele campinho que aprendi grande parte das várias disputas que se poderia inventar quando se tem um pedaço de gramado e uma bola de futebol.

Para o caso de algum saudosista passar pelo blog, aqui vão alguns que lembrei agora. Já aos que não jogaram bola e preferiram outras atividades, tentarei explicar a coisa toda de uma maneira que acho possível de entender.

Dois golzinhos, normalmente disputado com poucas pessoas, usando gols pequenos para aprimorar bolas colocadas;
Gol a gol, dois jogadores/goleiros, cada um em um gol e tentando fazer gols a longa distância
Sem goleiro
, com gol válido só se for chutado de dentro da área;
Controlinho (quando havia só três jogadores, dois controlavam a bola pra tentar chutar de primeira, de fora da área, com a bola tocada no alto. Em uma contagem pré-estabelecida, se os caras chutassem para fora ou o goleiro defendesse sem rebote um certo número de vezes, o goleiro ia ‘pra linha’);
Víspora (um pouco de cultura, em alguns lugares esta palavra é usada pra chamar o famoso bingo, ou loterias como a mega sena. Em nosso jogo, quando só um queria assumir a posição do goleiro, esse arqueiro de ocasião falava um número pra cada um e quem fizesse gol, falava um número e ia eliminando os oponentes)
Filinha(bem parecido com o anterior, mas com o restante fazendo uma fila enquanto o goleador, de costas para todos, falava um número aleatório e o sujeito correspondente na tal fila ia para a lateral secar o jogo. Nos dois últimos caso, quem saísse primeiro ia para a meta...)

Lógico que todas estas disputas foram experimentadas nas mais variadas particularidades: envolvendo tempo, jogando apenas com toques de primeira, usando ‘só uma das pernas’ ou só a ‘perna ruim’ etc. Além do mais, jogadas específicas envolvendo jogadas normais também eram bastante 'ensaiadas', como cruzamentos, cobranças de falta, cabeceadas, etc. Sabe como é, quando se é criança, a gente tem todo o tempo do mundo.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Vale o chaveiro

No campinho do Douglas acontecia uma modalidade rara, que eu nunca vi em outro lugar. Com certeza acontecia em outros lugares, mas só vi acontecendo naquela época. Dois capitães formavam um time de garotos de cinco ou seis jogadores e apostavam chaveiros ‘na ganha’. Para melhor localizar, o campinho tinha as dimensões de um campo de futebol de salão, o atual futsal. As regras eram claras, raramente havia uma falta e ‘dois vira, quatro ganha’.

Veio daí a coleção de chaveiros do Fefedo. Ao final das competições, tinha em uma gaveta lá em casa cerca de 250 chaveiros conquistados em futebas. É melhor não falar onde foi parar a coleção, pois não quero choradeira entre os leitores. Qualquer coisa, perguntem pro 'mais novo' João Luiz, que foi parar na Rússia...

Campinho do Douglas

Depois de tantos relatos de espaços para a prática futebolística, chegou a vez de falar da ‘cancha’ mais utilizada pelos aprendizes. A primeira menção ao local aconteceu logo do começo da nossa história no novo bairro.

O campinho ficava a duas quadras pequenas de casa e tinha esse nome porque o Douglas morava próximo e corria a lenda de que seu pai, um motorista de ônibus que fazia a linha Erechim-Curitiba pela Reunidas, mandara passar um trator de esteira em um terreno baldio.

A parte aterrada ia de uma rua à outra, mas para sorte da piazada, só o ‘miolo’ virou o campinho. O matagal que acabou nascendo nos extremos evitava que a bola se perdesse por uma das ruas, que era movimentada. A outra raramente recebia a visita de um carro e não provocava maiores preocupações.

Foi neste campo que fiz meu primeiro golaço. Depois de um lateral, matei no peito, toquei de joelho e, por acaso, apliquei um chapéu num pereba e, antes da bola cair no chão, chutei forte, de peito de pé. Para minha alegria, consegui mandar a bola entre as pernas do goleiro. Foi ou não um golaço?

terça-feira, outubro 25, 2005

Duplinhas de pênalti

Na minha cabeça, todo piá desse Brasil sem fronteira deve ter jogado este estilo de jogo. Mas pra não haver dúvidas, aqui vai um resumo de como eu jogava. Sabe como é, isso é igual bets. Cada rua tem as suas regras.

Duas duplas se enfrentam em uma trave. Enquanto um integrante da dupla chuta, outro integrante dos adversários 'cata' no gol. Os dois que sobram ficam 'na sobra'. Gol vale um; gol com a bola batendo na trave vale três, gol com a bola batendo no travessão vale quatro/cinco. Pra finalizar, quando o goleiro dá rebote e depois leva gol, vale dois na contagem.

Não faço idéia de quem inventou esses números, e desde que me entendo por gente, isso sempre existiu. Mas acho que assinei algum contrato pra propagandear este estilo quando fui secretamente ensinado. Não descarto a hipótese de ter sonhado...

Fraturas

Eu estava no ‘campão’ num domingo à tarde, disputando duplinha de pênaltis com outros três piás atrás de um dos gols, quando os mais velhos pararam de jogar e formaram um bolo de gente em volta de um cara deitado no chão, bem próximo da linha de fundo daquele go, quase dentro da pequena área.

Abandonamos nossa disputa pra ver o que tinha acontecido. Chegando lá, vi pela primeira vez um cara de quase trinta chorando bastante e com o rosto vermelho, urrando de dor e xingando a mãe de alguém. Falava algo como: “seu filho de um vaca ranhenta, vou te pegar, morfético do ca%$#ho!” O cara ficava com as mãos próximas da perna direita, e com os olhos arregalados vendo algo que saía da meia azul rasgada.

Chegando perto e prestando mais atenção, notei que esta perna estava um pouco esquisita, não combinava. Parecia que entre o joelho e o pé nasceu outro joelho, que dobrava para o lado direito, deixando o pé no chão, paralelo às coxas. Depois de entender o que acontecia, vi que daquele novo ‘joelho’ saltavam dois trequinhos avermelhados que logo percebi serem os ossos do sujeito.

Depois de vinte e sete tipos diferentes de arrepios, escutei um cara falar: “Putaqueospariu! Fratura exposta! Vamo levar o cara no hospital!”. Huuuummmmmm... Fratura exposta então? Que diabos será isso? Lá fui eu perguntar prum vizinho, que tava jogando bola com o contundido.

- Que é fratura exposta?
- Quando o maluco se quebra, o osso rasga a pele e salta pra fora do corpo é fratura exposta.
- Uia! E como faz pra arrumar?
- Bem, o médico vai tentar arrumar o osso no marra!
- Como assim?
- Voltar a perna pro lugar certo. Vai doer pacas...
- Tá loco!!
- É, é da vida, né...
- ...

Neste mesmo 'campão' eu vi outras coisas dignas de 'ER' e que dariam pra deixar qualquer criança com medo de praticar o futebol. Vários caras perderam dentes em cotoveladas, cabeçadas (tanto em outras cabeças quanto na trave), neguinho quebrou a perna no momento em que eu prestava atenção na jogada e, assim, escutei o 'estalo' no momento do fato ocorrido e tals. Brigas generalizadas que começaram com motivos absurdamente bestas. E por motivos incrivelmente justos também!

segunda-feira, outubro 24, 2005

A várzea profissional

Nesta época também participei do lado mais legal, cru e engraçado do futebol jogado naqueles campos gigantes. É que há quatro quadras, ou dois carreiros de casa, havia um outro campo, das mesmas dimensões, mas com gramado apenas perto dos quatro ‘corners’.

Neste lugar, sem nome definido e que chamávamos apenas de ‘campão’ que se apresentavam os atletas adultos de final de semana. E foi neste ambiente familiar que fiz meu primeiro gol num goleiro adulto, mas também foi onde vi a primeira fratura exposta(post desta terça-feira).

Vamos começar pelo gol. Era um dia frio pacas, num feriado. Eu não tinha o que fazer e resolvi ir sozinho lá ver o que rolava. Atrás de um dos gols tinha um espaço pro povo estacionar os carros e eu ficava encostado em um deles escutando os preparativos dos dois times.

Como um dos caras da equipe sem uniforme iria chegar atrasado e não tinha ninguém melhor, resolveram colocar o piá aqui. E lá fui eu jogar de calça de veludo vermelha, que eu usava pra combater o frio, no meio de adultos de 18 anos pra mais.

Ainda existia o 11 de fato - ponta-esquerdo - na época, posição que costumavam mandar os que não jogavam nada. E lá fui eu, escalado pra ocupar a faixa do abandonada do campo. Pra não incomodar muito, resolvi ficar acompanhando o jogo do ataque.

O time sem uniforme era muito melhor e lembrei logo daquele jogo depois de ler uma fantástica descrição de André Pugliesi pra saber como que se faz pra descobrir se um boleiro é bom: quanto pior o estado das ferramentas do cidadão, melhor ele é. Os uniformizados estavam todos alinhados, limpinhos, com meias novas, com direito a goleiro usando luvas, joelheiras e cotoveleiras (quer algo mais viado?)

O jogo já estava definido, com goleada certa para o ‘meu’ time, cheio de jogadores com chuteiras estouradas, meias das mais diversas cores e eu, lá de vez em quando, tocava na bola, apenas para ter o cuidado de passar direito pra algum companheiro. Em um contra-ataque, os adversários deixaram só um defensor contra o atacante, que na matada de um lançamento longo, já tirou a marcação do lance e, da entrada da grande área, chutou forte.

Não se sabe como, o goleiro frangueiro homossexual fez uma defesa milagrosa. Mas para azar dos ‘almophadinhas foot ball club’, a bola sobrou mansinha para mim. Não pensei duas vezes, fechei os olhos, meti a bicuda na pelota e mandei-a para o fundo das redes azuis, com remendos de cabos de várias cores. Lógico que, com o meu tamanho e força, só consegui fazer a bola ir fraquinha para o gol vazio.

O jogo já estava ganho, mas o time inteiro gritou com o gol inusitado. É evidente que comemoraram mais pra tirar sarro dos pobres adversários, mas pra mim aquilo foi o bastante pra sonhar com futuro de seleção brasileira durante vários dias. No segundo tempo apareceu o titular da posição e eu fui pra trás de um dos gols pra ver o resto do jogo com sorriso de orelha a orelha.

O primeiro emprego

Fui um gandula... Tá... tecnicamente não foi um emprego, afinal de contas não teve pagamento... Em Curitibanos, como em toda cidade desse Brasil grandão, sem fronteiras, havia um estádio. O Ortigão, fantástico estádio com uma cabine de rádio de um lado e duas arquibancadas do outro.

Segundo meu irmão, arquibancadas feitas por algum portuga. Elas ficavam longe do gramado, compostas por cerca de quinze degraus que, segundo alguns loucos, tinha a capacidade de colocar dez mil pesssoas. Mas todo mundo sabia que dois mil era uma estimativa mais que bondosa. É que nunca vi aquele estádio lotado... Embaixo destas arquibancadas ficavam os banheiros e os bares.

O time da cidade era o Varal. Equipe que usava um uniforme todo verde, em homenagem ao Palmeiras, time do pai do Maurício, amigo e sócio do meu irmão na empresa de fundo de quintal de fazer carrinhos de rolamento.

A gente ia lá pra ver as partidas de futebol de verdade, iguais aos que víamos na TV, dimensões oficiais, gramado cuidado, marcas feitas de cal, com direito a árbitro e bandeirinhas de preto, bandeirinhas nos escanteios e no meio do campo! Tenho quase certeza que só fui notar que existiam essas bandeiras nos campos de futebol naquelas laterais no Ortigão.

Como as arquibancadas ficavam longe, meu irmão achou por bem virar gandula pra ficar perto do campo. E lá fui eu junto, só pra ver qualé. Do lado da única cabine de rádio do lugar ficavam os ‘vestiários’. As delegações dos dois times entravam no terreno baldio ao lado, que ficava em um nível bem abaixo do do gramado. Vestiam-se onde desse e entravam no gramado por dois túneis longos, escuros, estreitos e que ficavam lado a lado, para compensar o desnível, no final havia duas escadas, detonadas, que facilitavam contusões antes de entrar no campo, pois as ditas cujas começavam na parte escura do túnel.

Sobre o trabalho, a coisa funcionava assim: Fefedo ficava deitado sobre as redes vendo o jogo e o Sandro corria atrás da bola - uma só - chutada pelas ruindades em campo. Ou seja, toda hora! Lembro de ter visto gols, mas não de algum digno de nota. Os caras eram todos partidários do futebol que o Eduardo Bueno gosta. Futebol-força, bruto e caneleiro...

No mais, foi amedrontador virar goleiro ao se deparar pela primeira vez com uma trave de verdade e doeu o pé quando arrisquei fazer um gol de pênalti depois de várias tentativas. Faltava força!

Para os que ficaram intrigados por causa do nome “Ortigão”, aqui vai uma explicação. O cara que mandou fazer o ‘Gigante do Bom Jesus’(to tirando sarro desse nome aí) era o prefeito Vilmar Ortigari e como todo estádio que se preze termina com ‘ão’, virou Ortigão. O sujeito se matou este ano, com 96 anos, deixando esposa com 94. Acho que ele pensou que era imortal, mas diferente do clã MacLeod, os Ortigari envelheciam com o passar dos anos.

domingo, outubro 23, 2005

Futebol

Para se chegar ao espaço onde jogávamos bola partindo da rua, havia um trecho onde às vezes ficava o caminhão. Explico. Para quem estava na rua e olhava o lar atual, veria a casa construída a cerca de um metro e meio do chão, do lado esquerdo havia uma faixa de gramado de cerca de quatro metros de largura onde as roupas eram penduradas.

Do lado direito ficava um caminho feito de cimento para entrar de carro e lá nos fundos da casa havia uma garagem. Mas atrás da casa, e não na continuação deste caminho, pois ali ficava o nosso campinho particular. Este trecho começava no nível da rua e progressivamente igualava o nível da casa lá no alto.

Cito que o caminhão às vezes ficava estacionado lá dentro para dar uma idéia da distância que ficava a rua do campinho, e da trave. A lembrança de uma criança pode pregar peças, mas calculo que do portão da casa até onde ficava o gol devia ter uns 20 metros. Falo tudo isso pra começar a contar vantagem sobre meu pai. Aconteceu poucas vezes, mas o suficiente pra impressionar um gurizinho.

É que eu ficava no gol e meu pai chutava a bola “de capotão” do meu irmão de lá do portão, acertando na maioria das vezes. Ele chutava bem tanto de esquerda quanto de direita e fez carreira como profissional em três times. Esporte Recreativo Ferroviário, Matarazzo Esporte Clube, ambos de Jaguariaíva e Oito de Outubro de Cornélio Procópio. Todas como lateral-esquerdo.

O que me deixava impressionado era como ele chutava lá de longe, fazia a bola fazer a curva, “invadir” o terreno do vizinho e voltar para o ângulo esquerdo da minha meta, sempre pra exigir de mim pontes estilosas e exageradas. E tudo isso chutando tanto de ‘trés dedos’ com a esquerda quanto com a parte ‘de dentro’ do pé direito. Coisa de gênio do garooooooto... Meu irmão passou boa parte da infância e da adolescência aprimorando essa arte de chutar a bola pra fazer curvas e afins.

Vem do maroto-mor a influência pra virar torcedor do Atlético. É que, segundo ele, o Furacão esteve por duas vezes em Jaguariaíva pra jogar amistosos quando ele jogava pelo Ferroviário. As derrotas por 0 x 1 e 1 x 2 foram óbvias, mas o que o fez criar simpatia pela equipe do Joaquim Américo Guimarães, futura Arena da Baixada, foi a grande habilidade de Jackson e Cireno naquele começo de década de 50.

Além disso, as atitudes arrogantes dos jogadores do Coxas e do Ferroviário em campos do Norte Velho paranaense também tiveram grande influência na escolha. O ponto alto da carreira foi uma vitória por 1 a 0 frente o Internacional-RS, na inauguração dos refletores do estádio acanhado. Na certa, uma atitude política por parte dos colorados gaúchos, que só estavam lá por alguma gentileza esquecida pelo tempo.

sábado, outubro 22, 2005

Traves

Havia uma marcenaria grande perto bem perto de casa e meu irmão e amigos costumavam ir lá vez ou outra pra pegar umas madeiras. O objetivo era fazer traves e carrinhos de rolamento. Neste post falarei das traves.

A presente casa tinha um espaço grande com gramado para que até umas cinco pessoas de até dez, onze anos pudessem jogar com uma trave. Aí dava pra jogar todo mundo por si, dois timinhos com um goleiro ou duplinhas de pênalti. Depois deste espaço havia um lugar que, em tese, seria uma horta, mas acabou virando um matagal.

Com o espaço certo, faltava a trave. As traves... Mais de trinta traves foram feitas, conforme o tempo foi passando. De todos os tamanhos, grossuras, alturas e larguras que o campinho permitia.

Por que tantas? É que bastava acertar um chute no travessão ou no ângulo que a trave se desmanchava, algumas vezes passando bem perto da cabeça do arqueiro, que normalmente era eu. Para consertar, dá-lhe prego pra remendar as madeiras...

Bem, se deu pra tirar alguma lição ao fazer uma trave, foi a importância da fundação. Fazíamos um buraco de uns trinta centímetros, colocávamos a trave pronta e usávamos pedras e lascas de madeira pra deixar o negócio firme. Com o tempo, o lugar que serviu de base das mais de trinta traves ficou parecido com o solo lunar...

Tistaaaaaaaaaaaaaa!

E o João começou a falar. Se fizessem um bolão para saber qual seria a palavra que o indivíduo caçula diria, provavelmente as opções mais prováveis seriam: pai, mãe, vó, fefedo ou Sandro. Mas ele surpreendeu todo mundo e resmungou: ‘tista’.

Tista vem de Batista, que era o nome do filho do vizinho, que vivia sendo procurado por sua mãe aos berros de Ba-tis-taaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! E como isso acontecia várias vezes por dia, o João começou com isso o seu repertório.

Além disso, o João Batista, do alto dos seus 15 anos, me ensinou o valor da palavra “depende”. Explico:

- Que será que corre mais? Um cavalo ou uma vaca?
- Depede...
- Depende? Como assim?
- Um cavalo de idade média corre mais que uma vaca, mas um cavalo velho ou um cavalo recém-nascido deve perder de uma vaca sadia.
- Tá... então o que é mais rápido, um cavalo sadio ou uma vaca sadia?
- Depende...
- Como é? Depende do quê??
- Ah, o cavalo pode ser um pônei, que não corre nada...
- Bah... Então tá... Vou brincar com o Pateta.

Como eu tava na fase de perguntar de tudo, acabei perdendo a vontade de perguntar essas coisas pro sujeito. Mas também aprendi um pouco de lógica nessas respostas.

sexta-feira, outubro 21, 2005

1ª aula de sexo

Depois de um cansar de ficar guardando as suas dúvidas sobre um acontecimento cada vez mais comum pelas manhãs da vida, o garoto de seis anos completos resolve questionar a sua mãe, que tricotava perto do fogão à lenha. Segue a conversa:

- Manhêêêê! meu pinto tá duro, o que eu faço pra parar com isso?
- Ah vá no banheiro e faça xixi que passa...

O piazinho vai em direção ao banheiro e encontra o irmão mais velho.
- Huahuahuahuahuahuahahu! é um tongo! vá no banheiro e depois vamos lá no caminhão!

Os dois entram na cabine, o mais velho reclina o banco ao lado dos passageiros e pega várias revistas. Todas têm o tamanho um pouco maior que os gibis, com cerca de uma centena de páginas e entrega uma delas pro brodinho.

- Tá... veja aí...

Ele nota que aparece uma mulher loira com pouca roupa em destaque na capa. Ao abrir a revista, ele reconhece uma fotonovela, um pouco mais tosca que as que já tinha visto a mãe ler uma vez. Logo aparece a mesma loira, que conversa com outra moça. De tanto ver a mãe quebrando a cabeça pra ensinar o irmão mais velho a fazer a lição da escola, ele aprendera a ler sozinho e começa a falar baixinho o que estava escrito no primeiro balão.

- Ô piá, largue mão de ler e só veja as fotos! Não precisa ler...
- Tá bom, tá bom... Que revista mais lazarenta essa...

E então começa a aula própriamente dita. A loira encontra um cara e logo já estão pelados. O cara começa a beijá-la na boca e LOGO JÁ TAVA BEIJANDO NO MEIO DAS PERNAS DELA!!!

- Que é isso, cara! Pra quê!!!
- Deus! Que piá chato! Vai vendo aí!
- Pois é, mas agora ela tá colocando o pinto na boca!!!!! Huauhahuhuahuahuahu! Que ela ganha com isso!? O cara pode fazer xixi na boca dela! UIA! FEZ!! HUAUHUAHHUAHUAHUAHUAHUA. Que doentes!

E aí a coisa fica mais engraçada, e ele passou a entender o que um cara pode fazer com um pinto antes de fazer xixi. Se aquilo valia pra alguma coisa, era um mistério

- Tá! Mas todo mundo faz isso? O pai faz isso com a mãe?
- Acho que sim. Vou fazer uma trave...

E lá ficou o rapazinho folhando as suas primeiras revistinhas pornográficas...

quinta-feira, outubro 20, 2005

Coelhos e o sexo

Para tentar algo diferente e evitar a tristeza deixada pela perda do Pateta, meu irmão resolveu criar coelhos achando, talvez, que eles seriam mais fortes, ou seria mais divertido. Que nada, morreram todos, vítimas de raposas assassinas, fedorentas e malditas filhas do tinhoso demônio dos infernos...

Nós os criávamos do lado de fora da parede onde ficava a cozinha. Eles ficavam numa gaiola grande e dávamos de comer as ervas cidreiras que encontramos no fundo do lote da casa.

Enquanto estavam vivos, faziam o que dava pra se fazer na gaiola; sexo, óbvio. Como eu ainda não sabia o que era aquilo, me divertia vendo o macho se mexer freneticamente por alguns segundos para, em seguida, desmaiar de ‘prazer’. Perguntei pro meu irmão o que era aquilo e recebi como resposta, um intrigante “Tá comendo as coelhas, oras...”

Mas hein??????

Livre

O primeiro fato digno de nota ao chegar na casa nova aconteceu quando o Pateta, aquele cachorro todo machucado que adotáramos na antiga casa, saiu do carro e se viu no jardim. Os adultos da história falaram que ele tinha uma espécie de bloqueio, provavelmente um trauma na outra casa e quando viu algo novo, nada a ver com antigo habitat, ficou doidão.

O Pateta corria, pulava, rolava, lambia, acuava e quase dava pra dizer que ele ria. Nunca vi um cachorro tão feliz. Com o tempo ele assumiu o comportamento de um cachorro daquele tamanho e passou a latir bastante para as pessoas que passavam na rua. E com essa característica, passou a ser odiado.

Meses depois de estarmos na casa ele sumiu. O Fefedo achou-o dias depois de notarmos o sumiço, morto. E aí começou a epopéia de cachorros mortos e sofrimentos. Lembram que esse era o Pateta 2? É que do número 1 eu não lembro o que houve e não posso dizer como me senti ou se fiquei sabendo que ele havia morrido.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Mudança

A proprietária da casa gigante teve um problema financeiro, pediu pra saírmos e lá foi a mãe atrás de outra casa pra morar. Destino: São Luiz, bairro onde eu descobri o sexo, como roubar madeira, a fazer trave, carrinho de rolamento com o produto de roubo, como se faz pra evitar que seu filho fume, que você pode se cortar feio jogando bola, e muito mais! Apareeeeeeça!

Parque do Capão

Como os leitores do blog não conhecem Curitibanos, o Parque do Capão era uma praça bem grande, com um terço formado por aqueles brinquedos infantis totalmente seguros e os dois terços restantes eram só de gramado e árvores.

Aí vale uma descrição dos brinquedos. Para começar, vários balanços com cadeirinha de ferro que poderiam degolar a criança mais desavisada. Um gira-gira cheio de lascas pra enfiar farpas nas pernas do sujeito. Na verdade, todos os que eram feitos de madeira estavam indo pro beleléu. Os escorregadores eram os mais legais, vitimados da ferrugem, com alguns buracos em lugares estratégicos.

E o mais perigoso de todos. Um que tinha duas cadeirinhas que balançavam pra frente e pra trás. Elas ficavam de frente uma pra outra e havia uma base de madeira ligando as duas. Era perigoso pois, conforme o brinquedo balançava, se a criança deixava o pé junto à sua cadeira, corria o risco de ter a perna presa entre a cadeira e o chão fixo. Como havia uma lenda de que um piá havia quebrado as duas pernas, todo mundo odiava o treco, que ficava vazio.

Sobre os dois terços, aquele canto era ideal pra jogar bola, pra andar pelo muro lateral de um dos lados e se sentir fodão por se equilibrar enquanto ele ficava mais alto do chão. E de subir em árvores. Em uma em especial, dava pra subir bem alto, mas num momento na 'escalada' você se via num lugar em que descer era uma operação perigosa e ficava um tempo, tomando coragem pra tentar fazer a manobra perigosa, correndo sério risco de cair e se quebrar. Mas eu sempre saía ileso e voltava pra casa com cara de maroto...

terça-feira, outubro 18, 2005

Ratos

Como a casa era bem grande, e havia ficado um tempo sem ser utilizada, o que imperava era uma coleção de bichos. Em especial ratos e pulgas. Estas últimas ficavam no sótão da casa. Sabíamos disso porque tinha uma escada que dava para o lugar. Só precisava chegar nos últimos degraus pra saber e nem todo veneno do mundo dava jeito.

Já os ratos provocavam um terror, principalmente com meu irmão, que peregrinava entre o quarto dele e o da ‘empregada’ para fugir das criaturas malditas dos infernos. Uma vez, meu padrinho, o tio Chico, trouxe um gato pra tentar afugentar os parentes do ligeirinho. Ele ficou um dia, comeu uns dezoito ratos e sumiu!

Os americanos roubaram a nossa idéia do que havia acontecido com o bichano e lançaram em 2003 um filme chamado Willard. Na nossa cabeça, os ratos fizeram uma reunião pra saber o que fariam pra se livrar do intruso assassino! Decidiram que o melhor era unirem suas forças e matar o gato. Secretamente, de madrugada, juntaram-se, cercaram o felino e fizeram que nem os filhotes de Fritz Lang com o ‘M’ de Dusseldorf, meio século antes.

Telhados

Continuando a visita à casa atual da conversa, entramos no quarto do Fefedo. Ele não gostava muito daquele quarto, por causa dos ratos, mas essa história eu conto no post seguinte. Havia naquele quarto uma janela no alto com grades que dava acesso ao telhado. Era só subir numa estante e chegar na Janela. De lá para o telhado, bastava ser pequeno e atravessar as grades.

Este telhado entra na história por ter sido o primeiro que eu coloquei os pés. Até então, eu não havia pensado que aquele lugar era algo possível de se caminhar ou correr. E estar lá era tão surreal quanto um filme do Fellini.(propaganda institucional: logo eu conto quando um peito de outra mulher adulta que não fosse a minha mãe surgiu na minha vida. Aquele do Amarcord).

Então aconteceu de eu estar sobre um telhado. Que fazer? Bem. Dava pra correr atrás do meu irmão, dava pra ficar gritando e provocando as pessoas que passavam pela rua e dava pra ficar um tempão na chuva pra ver como funcionava o funcionamento de um telhado quando a água caía nas telhas, e tudo mais. Jogar pedra, só em alguns casos especiais.

E a filosofar também. Lembro que uma vez eu tava sozinho no telhado logo depois do almoço e notei que tinha um carro esquisito, que eu nunca tinha visto igual. Só depois, ao analisar e perguntar pro pai, fiquei sabendo que era um Impala. Mas como era novo, diferente, achei que era algum bandido de fora. De algum estado de fora de Santa Catarina ou Paraná. Algo como o Estados Unidos. Vendo o Chips, eu achava que a Gringolândia era um estado brasileiro virado em auto-estradas.

Enquanto o carro não saía do lugar onde estava estacionado, logo do outro lado da rua, eu viajava. Fiquei prestando atenção nas nuvens, procurando achar alguma que formasse algum bicho, sentindo inveja porque uma vez meu irmão viu e eu não.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Ponta Grossa

Mesma viagem, agora com uma carga alta de algodão no 11-13, voltando pra casa. O Mercedes descia um longo trecho em reta em uma noite qualquer, Com o motorista dirigindo tranqüilamente. Já os dois passageiros na boléia estão pensando na vida, cada um do seu jeito. O mais velho no banco, olhando a paisagem e o mais novo dormindo e sonhando no chão, com os pés perto do câmbio.

No sentido contrário, um Opala tenta uma ultrapassagem em uma Scânia e nem se importa com o que vem pela frente. Para evitar uma batida frontal, e uma tragédia para os integrantes do carro que vinha, o motorista do Mercedez vira o volante e vai para a esquerda. O caminhão vira demais e, para evitar uma ida para o mato, nova correção, agora para a direita. Para ajudar, naquele trecho em particular, o acostamento tinha uma diferença de altura grande demais em relação à pista e a carga alta acabaram por ajudar a tombar o caminhão.

O sujeito que aqui escreve só lembra do que aconteceu minutos depois. Acordou desorientado, com a boca cheia de terra e de maneira surreal para aquela cabecinha, sai andando pelo pára-brisa e encontra o irmão e o pai conversando com um caminhoneiro que estava parado na frente. Todo mundo calmo, sem stress... loco.

Lá por Maringá

Um pai leva seus dois filhos em um restaurante de beira de estrada para um almoço. Os filhos adoravam essas oportunidades de sair de caminhão, afinal de contas, ele vivia viajando e raramente ficava em casa. E quando ficava, passava a noite jogando baralho em um lugar chamado Don Chopinho.

A garçonete chega na mesa e se dá o seguinte diálogo:

Garçonete: - Bom dia! Que crianças lindas o senhor tem!
Caminhoneiro maroto: - Pois é, mas é uma pena, eu tenho que criá-los sozinho...
Garçonete: - Credo, que houve?
Caminhoneiro malandro: - A mulher morreu e eu tenho que cuidar deles. Quer me ajudar?
Um dos filhos: - PARÁÁÁ! Minha mãe não morreu! Tá lá em casa! BUÁÁÁÁÁ!!!

sábado, outubro 15, 2005

Entrando na casa

A entrada da casa em si era um pouco antes do cômodo das derrapagens, do lado esquerdo. E em uma nova 'quebra' para a esquerda, havia duas salas. A primeira de jantar e a segunda a de estar. Nesta última ficava um gigantesco sofá de couro resistente em 'L'.

Eu enfatizo o fato de o dito cujo ser resistente, pois ele resistiu bem ao tempo em que ficamos em casa. Como meu pai era o ‘tira mau’ da dupla de educadores, mas ao mesmo tempo fazia carreira como caminhoneiro nas estradas brasileiras, vivíamos em casa apenas com a dona Voninha e o João só de olho nas traquinagens.

A coisa toda envolvendo o sofá acontecia à noite, quando novela ainda não era algo importante na vida da gente. Como tínhamos espaço para correr, saíamos em disparada em direção ao trem e... era só inventar: deslizar no chão de madeira bem encerado com meias e pular a última hora sobre o sofá; correr descalço, pular em alguns dos lados e pular de novo pro outro lado; e a mais perigosa quer era tentar correr no encosto do sofá, pra fazer de conta que andava ‘pelas paredes’. Pular de uma parte do ‘L’ para a outra também era bastante comum.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Pateta

A história conta que eu tive três patetas e duas bolinhas. Três cachorros com o nome Pateta. O primeiro deles eu não lembro direito e é bom não viajar muito. O segundo foi nesta casa. Como o lugar era espaçoso e grande, havia até espaço pra um bicho grande ficar escondido. E foi o que aconteceu.

Até onde eu lembro, o Pateta 2 estava embaixo do assoalho, bem lá no fundo. O que eu lembro bem é que foi uma luta tirá-lo de lá, que o coitado tava muito machucado e, mesmo com o tamanho grande, tinha medo de tudo. Os adultos da história concluíram que ele havia sido maltratado por algum dono e se escondeu ali na minha casa. Adotamo-lo(rárárá).

Minha mãe e a dona Cibila, vó da Fabíola, pelearam bastante pra curar o coitado do cachorro. Demorou pacas pra ele confiar em seres humanos de novo, pelo menos é o que parecia. Mas ele só virou um cachorro de verdade, daqueles que latem até pra passarinho no fio de luz, na nossa casa seguinte. Novas teorias adultas concluíram que ele ficou com trauma da casa, do bairro, e só com novos ares o Pateta santo cristo se libertou...

A Fabíola

A casa que morei naquele final de 80 era de esquina, No outro lado, na casa vizinha, morava a Fabíola. As duas casas eram bem parecidas, com certeza foram construídas na mesma época, e eram da mesma família, pois naquele cômodo onde eu dava as minhas derrapadas, havia uma porta que dava direto para dentro da sala dos vizinhos.

Era daquelas portas com o buraco da fechadura grande e dava pra espiar as quatro pessoas que moravam lá, fazendo suas refeições, etc. Só fui ver aquela porta aberta no dia em que eles se mudaram. Pensando agora, acho que devíamos incomodar bastante, pois vivíamos fazendo zona naquele cômodo.

Minha mãe fazia amizade absurdamente fácil e rápido, e enquanto os caras da mudança colocavam os apetrechos ela já estava falando com os vizinhos pra saber mais detalhes sobre a vida, e tudo mais. Lá moravam a Fabíola, seu irmão mais novo, sua mãe e sua avó. Sem pai. Nunca toquei no assunto.

Foi com esta criaturinha que tinha a minha idade que se iniciou o projeto de primeiro amor. É que com cinco, seis anos, não havia namoro, discutir relação. Mas os beijos ao menos foram ensaiados. Toscamente... Sem acompanhamento de alguém pra ajudar, era só selinho. E vamos parar com isso que eu quero brincar com carrinho, pô!

Morena de cabelos lisos, pele bem clara, combinando com o verão curitibanense (quem nasce em Curitibanos é curitibanense, belê?). Ela tinha uns olhos tristes, redondos e castanhos escuros que brilhavam e provocavam aquela vontade legal de tentar fazer de tudo pra não deixá-los mais tristes ainda, de modo que era fácil eu dar o que eu tinha na mão, como forma de presente, pra tentar arrancar sorrisos.

Vivíamos brincando na parte de trás das duas casas, onde havia um terreno bem grande, com várias árvores e um esqueleto de uma casa pequena, sem telhado, nem paredes, nem chão. Esta casa era a nossa visão particular daquela música “A Casa”, do Toquinho. Mas, mesmo sem chão, a gente entrava. Até dava pra fazer uma rede...

Ela era bem mais ‘madura’ que eu. Vem daí a impressão, consolidada mais tarde, de que homem não passa dos doze anos e mulher nasce com doze anos. Por hora, só dava pra pensar na metade final desta frase.

quinta-feira, outubro 13, 2005

A banheira

Continuando a apresentação da casa, depois deste cômodo amplo onde estávamos brincando com as cadeiras, vinha o banheiro. Era um banheiro muito amplo e tinha uma banheira. Foi a primeira vez que eu vi ao vivo um troço daqueles. Antes, só nos filmes ou em algum domingo nos trapalhões.

Tá tudo muito bem, tá tudo muito bom, mas realmente, realmente... Banheira era coisa de porco... No começo eu achei até chique, vamos tomar banho na banheira!! Mas logo eu descobri que, prum moleque legítimo de cidade pequena, que vivia andando com ou sem havaianas, sempre com os joelhos e cotovelos estourados, macaqueando em árvores e perambulando pela vida, entrar numa banheira cheia resultaria em ficar nadando na própria sujeira!

Não. Banheiras? To fora. Nada melhor que o bom e velho chuveiro, que mandava a água com a sujeira direto pro ralo.

Mas com a banheira, veio pela primeira vez a visão do espelho que todo banheiro tem. E lá fui eu imitar meu irmão e fazer cabelo moicano, apoiar-se numa das bordas da banheira, pra conseguir enxergar o resultado e ver como que ficava o estilo punk de ser. Os tombos que essa tentativa resultava fazia parte do plano divino de ficar esperto pra vida e largar mão de ser vacilão. E como eu estava tomando banho, lavou tá novo.

Corrigindo:(15:02) De acordo com meu irmão, essa não foi a minha primeira banheira mas minha quarta casa com banheira. Na verdade esta foi a derradeira vida de pequeno burguês. Depois, só decadência. A minha memória me enganou. Vai ver esta foi a primeira vez que eu podia ficar horas brincando no banheiro sem se preocupar e guardei daí minha primeira lembraça legal de brincar em banheiras. Vai saber...

A casa seguinte

Depois de alguns meses no aperto, fomos morar em outra casa. Mas essa era diferente, gigantesca. Conforme os posts vão chegando, você vai conhecendo a casa. Primeiro a entrada. A porta da frente era direto na calçada da rua, mas pra chegar lá, havia um corredor longo até chegar na porta da cozinha, que ficava à esquerda.

Este corredor dava num cômodo maior. Esta configuração de ambiente proporcionava uma pista perfeita para várias brincadeiras. Uma delas, a mais divertida era pra ser usada em nevasca.

Eu explico: na época tínhamos umas cadeiras com pernas de metal. E na continuação das pernas, o metal ajudava no encosto. O plano era deixar a cadeira como aqueles trenós puxados por cães. Colocávamos os pés traseiros e o encosto no chão, apoiávamos as mãos nos pés da frente e o trenó estava pronto.

No meio do corredor, começávamos a correr a toda, chegando nesse cômodo mais amplo, colocávamos os nossos pés sobre os pés traseiros da cadeira e deslizávamos, com a intenção de derrapar, como se fosse um carro envenenado, etc. Hoje pode parecer bobo, mas prum piá era uma das boas coisas da vida. Mesmo que essa vida tenha só cinco anos.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Inverno

O inverno de 80 foi rigoroso. E neste inverno começamos a sofrer com a louca decisão do meu pai de nunca ter comprado uma casa. Viver de aluguel virou a nossa sina. Até esta data, morei em 18 casas. Em vários momentos meu pai teve condições de adquirir uma casa própria, mas por motivos que só ele sabe, nunca comprou.

Em nossas peregrinações, a ‘casa do lef’ foi a primeira entre as bizarras. Era pra ser algo temporário e, portanto, tínhamos mais móveis que a casa poderia suportar. Era uma casa pequena, cheia de goteiras, longe de um lugar perto pra se comprar coisas e o frio foi doloroso.

Vida de estudante não é fácil

“É isso... não quero mais saber de estudar. Escola não serve pra nada. Não ensinam nada e eu fico perdendo meu tempo...” Era essa a minha reclamação quando eu tinha cinco anos e estava na pré-escola do colégio das irmãs(freiras). Como eu só desenhava, pintava, achava aquilo tudo uma perda de tempo. Também era judiado por uma moça mais velha. Eu não sabia o motivo, mas ela vivia enchendo meu pequeno saco de poucos anos...

Eu também lembro que, por algum motivo, resolveram dar a minha lancheirinha para a minha avó, que estava indo pra Mato Grosso, ficar um tempo na casa do meu tio. Sem lancheirinha por uma semana, fiquei envergonhado perante meus colegas de escola e me escondia na hora do recreio. Foram os cinco dias mais difíceis dos primeiros anos da vida de estudante.

No final das contas eu fiquei pouco tempo no pré. Minha mãe acreditou em mim e resolveu me tirar da escola. No ano seguinte, de tanto ver meu irmão mais velho fazendo a lição, aprendi a ler sozinho. Tenho certeza que aprenderia no ano anterior, mas brincar o dia inteiro sem precisar se preocupar era muito mais legal...

Sozinho no mundo

Pois é... o plano era fazer um blog com histórias da minha infância em ordem cronológica, mas lembrei de um episódio de antes dos últimos posts. Em dezembro de 79, meu pai, que era caminhoneiro na época, levou junto eu e minha mãe em uma viagem de 'turismo' para o Norte e Nordeste. do período de mais de 40 dias de estrada, o melhor aconteceu em Belém, terra onde nasceu Jesus e Fafá, no Pará.

Estavam descarregando o caminhão e ainda demoraria um bom tempo pra sairmos. Meu pai resolveu dar uma folga pra minha mãe e me levou para o centro da cidade. O objetivo era encontrar uma livraria em comprarmos carrinho pra mim e cartões-postais pro povo em geral. Aos leitores curitibanos, a rua onde estávamos era bem parecida com a Marechal Deodoro, entre a João Negrão e a Praça Osório. Aos de fora, uma rua bastante movimentada.

Enquanto eu ficava olhando os carrinhos, meu pai escolhia postais por perto. Depois de um tempo, resolvi procurar o seo Maneco e cadê o sujeito??? o cara havia desaparecido! Já comecei a chorar! E na minha cabeça só pensava em fazer o trajeto que nos levara até ali. Saí correndo, na calçada movimentada da rua e fui em direção a onde achava que estaria o caminhão e a minha mãe. Lembro de ter atravessado uma rua e, na seguinte, não consegui pois era movimentada. Um policial viu eu sozinho e chorando e me pegou no colo.

Para minha sorte ele resolveu procurar algum responsável por mim e seguiu em direção à livraria. E eu louco pra me soltar e ir atrás da minha mãe. Logo meu pai apareceu e explicou a situação. Ele estava vendo os tais postais e uma mocinha falou que em outra parte da livraria havia outros. O louco achou que eu não iria ligar e me deixou sozinho...

De resto, lembro que vi muita estrada, muito caminhão, uma lagosta viva nadando em um buraco em alguma praia de Olinda, pronta para venda. Lembro de ter reclamado que não havia pontes no caminho para o Rio de Janeiro e meu pai tirando sarro que logo eu veria alguma, e logo foi-me apresentado a ponte Rio-Niterói.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Sobre a ironia

Em um dia qualquer, entre o ano de 79 e 80 recebemos a visita do tio Tiquinho. Ele era o irmão do meu avô materno. Antes de continuar com essa leitura, pare um pouco, olhe para o lado superior esquerdo do seu campo de visão, apóie o queixo na mão esquerda, de um jeito que você possa dar aquela coçada analítica e tente imaginar o figura. Tio Tiquinho...

Alguém visualizou um cara de 1m90 e quase 200 kg? Pois bem, esse era o tio Tiquinho. Do ponto de vista de um piá de quatro anos, um tampinha, aquele sujeito foi e é o maior ser humano que já existiu. Era gente que não acabava mais! Como um cara chamado Altino virou Tiquinho? Acho que só posso culpar a ironia dos Goetten. Ou alguma piada interna que se perdeu no tempo.

E analisando os nomes dos Goetten em geral e a quantidade de caras cuja certidão de nascimento começa com “Al”, acho que os caras não vieram da Alemanha, mas devem ser árabes. Só pode: Alfredo(6), Aldori, Altamir, Altino(2), Albari, Aldair, Alvino, Algemiro, Alcides e, antes de chegar até o Alessandro aqui, teve um Alecindro!

Só pra constar, um pouco de religião. O primeiro Goetten que chegou no Brasil era um sujeio chamado Adão. Como deve ter sido difícil achar uma Eva, resolveu seguir o coração e se casou com uma moçoila chamada Ana Bárbara Roth. Não se sabe por qual motivo saiu da Alemanha, nem o porquê de escolher Santa Catarina para morar, mas ser filho de uma moça chamada Catharina pode dar algumas pistas. Se gostou da historinha, aqui tem mais...

domingo, outubro 09, 2005

Fantasmas

Em seu primeiro ano, o João teve bem mais doenças que uma criança normalmente poderia ter, mas se curou de todas, virando um piá sem medo que parou em Moscou. Em uma dessas crises, ele foi internado no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba. Como morávamos em Curitibanos, ficamos só eu e o Fefedo em casa.

Ficamos os dois nas mãos de uma empregada que, se não me engano, ficou louca das idéias anos mais tarde. E desta época vem a minha lembrança mais antiga de ter me fantasiado de alguma coisa. Os dois, achando que estávamos abafando, pegamos dois lençóis brancos e invadimos a casa ao lado pra aterrorizar os vizinhos.

No mais, porres homéricos e dionisíacos de nescau e pão, com os olhos vermelhos de tanta televisão...

Hum... dá pra fazer um versinho com essa rima, mas melhor não. Deixa assim.

O João chegou

O último filho da Dona Voninha nasceu em 25 de janeiro de 80. Seo Maneco nunca soube fabricar mulher e, por mais que irmão mais velho esperasse uma irmã quando eu nasci e nós dois torcemos por uma Voninhazinha, ficou mesmo em três homens.

Como sempre acontece, o nascimento do guri fez surgir com mais força o sentimento de ciúmes, típico do que acontece entre o caçula e o resto da tropa. O ponto alto da minha vergonhosa participação como irmão do João foi quando eu usei a parte de ferro de um isqueiro pra queimar a barriga dele. Sacanagem, eu sei.

Depois do berreiro e de levar uns tapas veio o sermão. E com ele, o remorso eterno que só acabou anos depois, quando o teuzinho fez uso de um lápis como se fosse uma faca e me apunhalou no braço. Foi até engraçado. Ele deixou o pedaço de um grafite enfiado no couro...

sábado, outubro 08, 2005

Sobre a morte

Alfredo Moraes Goetten, morto no dia 15 de fevereiro de 1979 com 62 anos, vítima de câncer no cérebro, deixa mulher, três filhos e cinco netos. Eu entre estes últimos. Ele foi a primeira pessoa a morrer até onde eu sabia. Até então, morte era algo inexistente. Eu nunca tinha ouvido falar destas coisas.

Apesar de ainda não ter completado quatro anos, eu lembro muito bem dele. O sujeito não era fácil. Alto, vivia de pilantragens pra cima dos netos. Mas era pra ficarmos espertos pra vida. Adorava colocar uma bala fora do nosso alcance e ‘se vira magrão’ pra conseguir pegar. Quando não tava com saco pra ficar de pé, amarrava os doces num lugar alto, completamente inacessível pra mim e pro meu irmão. Quando aprontávamos, usava um castigo muito singular. Deixava os piazinhos pelados, pra evitar possíveis fugas pros vizinhos, etc.

Usava o método científico da recompensa pra nosso aprendizado. Ou pra sacanear. 10 cambalhotas por uma barra de chocolate, etc. Foi o que melhor ensinou que neguim precisa se virar pra conseguir o que quisesse. Se bem que, pensando agora, ele acabava entregando os doces. Gostava mesmo era de ver o ‘circo pegando fogo’.

Aprendi a jogar dominó com o sujeito e vem daquele sangue teuto-portuga o gosto pelo álcool em doses convenientes. Do velório, lembro da quantidade absurda de gente que veio prestigiar o evento e do meu irmão andando de bicicletinha, fazendo manobras radicais tirando cada fina do caixão que deixava o povo loco.

Em conversas futuras com meu irmão, concluímos que a morte do vô Alfredinho causou bem mais que a perda de um cara esperto, que nos divertia. Com ela, desapareceu um sujeito que fazia meu pai - seu genro - ter um certo respeito por algumas coisas.

Cenas de um casório

Só fui daminho uma vez na vida. Pra quem não conhece o termo, daminho é o sujeito que leva as alianças. O Pajem. Segundo o surfista Houaiss, daminho não existe, mas era o que me fora ensinado. Foi uma desgraça. A camisa cheia de frufrus coçava pacas, a gravata apertava o pescoço, ficar parado era um saco. A única palavra de consolo era que eu gostava da noiva. Alessandra. ALESSANDRA! Igual que nem que eu! Acho que eu queria casar com ela, mas com quatro anos é difícil conseguir isso, né não? A Nicole Kidman quase fez essa loucura, mas Alessandras costumam ser bem mais bonitas que qualquer moçoila de Róliúdi.

O roubo

Num país com tantas desigualdades, nada mais comum que uma criança se dar conta muito cedo que pode ser 'aliviada' de suas posses. Com quatro anos, eu tive o fusca da família e um caminhão de brinquedo roubados. Senti muito quando notei que meu brinquedo preferido foi levado. Eu o havia deixado perto da porta da frente, do lado de fora. Assim como a casa onde tomei meu primeiro susto, essa onde morava também ficava no alto. Mas tinha portão e a garagem era fechada. Nunca passara pela minha cabeça que alguém iria querer meu carrinho. Da onde! Em que mundo nós estamos!

Depois de fazer o B.O. com a delegada minha mãe, veio o veredicto. Quem roubou foi algum moleque de um conjunto de casas simples no final da rua e foi bom pra eu aprender a não deixar meus brinquedos em qualquer lugar. Então eu descobri numa tacada só que minha casa não era inviolável, que minha mãe tinha poderes ocultos e o preconceito de que 'aqueles piás são ladrões'.

Sobre o fusca branco do meu pai, roubado em uma visita a primos, em plena luz do dia, nada a declarar. Aquilo não era importante pra mim. Ele que se preocupasse com os brinquedos dele e eu me virava com os meus.

sexta-feira, outubro 07, 2005

O Galaxie marrom

Seo Maneco teve dois Galaxies na vida. Um marrom e um branco. Este último tem bastante história pra contar, mas ainda não é o tempo d’elas virem a público. Do marrom eu lembro de poucas coisas, mas com ele eu descobri que a vida não é um desenho animado. Dá até pra considerar uma lição de vida! Guenta a mão...

Em 79 nevou em Curitibanos e foi nesta ocasião que tive meu primeiro contato com esse tipo de coisa. Eu fui acordado pela minha mãe, que gritava... berrava, que era pra eu correr pra ver um negócio. Levantei da cama e, esfregando os olhos de sono, fui ver que diabos tinha acontecido pra tanto alarido. Toda cheia de malandragem, minha mãe pediu pra eu olhar o mundo pela janela da sala e lá fui eu, na certa de olhos brilhando.

É... bem... tinha neve, né. Mas era bem ralinha e parecia uma garoa mais forte. Mas mesmo assim era neve! E lá fui eu brincar, tocar, correr, cair, escorregar, sujar-se, fazer bola, jogar no meu irmão, muito mais ele jogar em mim. Mas como eu desci no colo da minha mãe, a primeira vez que toquei na neve mesmo foi no vidro do Galaxie marrom. Deu pra ficar passando o dedo e desenhar coisas. Se não me engano, alguém fez um boneco sobre o capô, mas isso pode ser coisa da minha cabeça.

Ah! sobre a lição de vida do começo do post: Num dia qualquer, eu tava de bobeira na frente de casa e meu pai estava se preparando pra sair, já dentro do Galaxie. Como ele estava conversando com alguém e não saia, resolvi escutar a prosa, pra ver qualé. Como o assunto não me interessou, resolvi sair de perto. Por algum motivo, fui sentar do lado do pneu traseiro direito e fiquei admirando a roda estilosa da lancha.

Como o motor estava desligado, comecei a brincar de bater no pneu. Na louca, me deu a idéia de testar uma teoria. Será que se eu colocar o dedo no chão e deixar o pneu passar por cima dói? Nos desenhos animados eu vi os carros passando sobre o Pateta e ele nem se machucou!? Parece macio, acho que nem machuca. Vou ver. Neste instante meu pai ligou o carro e começava a se despedir do cara que tava na rua. Coloquei o dedo indicador direito. Motor ligado, dedo no chão. Vai ser rápido. Logo eu descubro.

Para minha sorte, reparei que tinha o pedaço de um galho de árvore bem perto de mim e resolvi tirar o dedo e colocar o galho no lugar. Se ele quebrar é porque minha teoria tá furada. Se não, na próxima eu coloco o dedo.

Bem. O fura-bolo direito agradece até hoje...

quinta-feira, outubro 06, 2005

O fim está próximo

Não, não é uma inscrição em camiseta dias antes de um chute na bunda, como diz *.PDF. Em 1979 pela primeira vez eu fiquei sabendo que tem gente se preocupa com o final dos tempos, da vida, do universo e tudo mais. Cara! O mundo pode acabar!! Mas a minha estréia nas teorias apocalípticas foi tão ridícula que até dá pena. Um amiguinho de uns quatro anos a mais que eu, na verdade amigo do meu irmão disse que o mundo ia acabar em 1980.

“O QUÊ!? 1980!! Isso lá é data pra se acabar o mundo!?” Essa devia ser a reação do meu irmão, mas ele preferiu um: “Mas é um tongo mesmo. De onde você tirou isso?” Pois é. Uma boa pergunta, por que diabos o mundo iria acabar naquele ano? Qual a lógica? Depois daquilo eu sempre ouvi que 2000 era um bom, redondo e cheio de zero ano pra se acabar com tudo. O que era uma coisa mais com cara de 'Deus nos acuda'.

Eu até acho que foi bom ter o primeiro contato com esse tipo de coisa de um jeito tão engraçado, ainda mais com meu irmão mais velho lá, cheio de razão, dizendo que era burrice pensar em coisa tão estapafúrdia. Depois daquilo, a cada nova teoria sobre o fim dos tempos, eu acabava levando na brincadeira.

Um filme de terror

Em 79 eu morava em uma casa que não tinha o portão da garagem. Ela ficava no alto, algo como dois metros em relação ao nível da rua. No alto o terreno era plano e ficava o Fusca branco da família. Eu não tinha nada melhor pra fazer e resolvi pegar um pano e limpar os pára-choques estilosos do carango.

Eu estava nos últimos retoques na traseira do carro quando um maldito Aero Willis marrom resolveu usar a entrada da garagem para dar a volta. Ao fazê-lo, o veículo dos infernos fez um barulhão do capeta ao acelerar e me deu o primeiro maior susto da vida de todos os tempos e tudo mais. Eu fiquei branco e corri pra dentro de casa. Entrei berrando e, sem poder falar direito pra mãe o que acontecia, fui direto pra cama chorar feito uma criança. Feito uma criança...

A 1ª Copa/TV/Bola

Em 78, e nestes dias também, Copa do Mundo era uma boa desculpa pra se comprar uma TV nova. Na minha família não foi diferente. Meu pai e meu avô pegaram o fusca e o piazinho aqui e foram pruma loja realizar o sonho de consumo. Arrumaram uma promoção que dava de brinde uma bola de futebol.

Como eu fui junto, achei que a lógica era eu pedir a bola pra mim mas Manequeira, com toda a sua habitual psicologia infantil, disse que a bola era do Fefedo, afinal de contas, ele tinha seis anos. Eu, com meu tamanho, mal poderia brincar com um objeto vermelho e branco quase do meu tamanho. E que eu ficaria com a TV. Eu, crente que tava abafando, voltei pra casa em cima da caixa de madeira do meu mais novo objeto de domínio.

Dono o escambau! Fiquei, lógico, sem bola e sem TV. Aos domingos, perdia a posse pra minha vó, que via o Silvio Santos e não dos deixava ver os Trapalhões. Não podia ver ‘Supermáquina’, ‘Esquadrão Classe A’ pelas novelas globais. E Jornal Nacional meu pai tinha que ver, né! Fiquei sem pica pau...

Essa TV ao menos me acompanhou até a Copa de 90, quando foi aposentada. Escrevendo isso agora, acho que ela era amaldiçoada, pois o Brasil não ganhou nada com ela funcionando! Pelo menos eu conseguia impor minha vontade nas tardes da vida e foi nela que assisti ao Ferris Bueller marotear. Várias vezes. Mia Sara...

Outra coisa bizarra aconteceu em 79. Eu tava no domingão à tarde trocando de canal depois do “Domingo no Parque” e vi o Silvio Santos em dois canais ao mesmo tempo. Sendo ajudado pelo meu irmão, posso escrever que o dono do baú passava no canal 7 e 9! Se não me engano ele estava começando na TVS, atual SBT mas ainda tinha contrato na Globo.

Da Copa na Argentina eu lembro pouco. Tenho a impressão de ter visto o gol do Zico contra a Suécia nos acréscimos, larapiamente anulado pelo árbitro safado. Meu pai ficou indignado e falou um palavrão na frente de todo mundo, algo bem raro. Ele tinha um nome a zerar. Já da bola colorada, meu irmão tomou posse de fato e de direito. Mas sempre me deixava brincar. Em breve chego ao ano de 81 e conto da MINHA primeira bola. Só minha. Uma bola verde e branca que me dava vergonha por ser da cor do Coxa.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Uma rã!!!



É... eu era assim quando completei meu primeiro ano. Mas muitos não acreditavam que eu 'vingasse'. Tanto que fui logo batizado em tempo recorde pra não morrer pagão. Nem adiantou, vou morrer pagando com a cara das pessoas. Como era prematuro e muito pequeno, acabei virando atração nos 'early days'. Pra medir a cabeça do maroto, até pote de iogurte usaram. E 'cabeu' direitinho. Tá certo que depois falaram que nos idos de 70, um pote de iogurte era diferente dos de hoje, e aquele usado pra medir a cachola tava mais pr'aqueles potes de sorvete 'sem parar'. Mas o duro mesmo era ter que escutar sempre uma tia contar que eu parecia uma rã... Sacanagem!!

terça-feira, outubro 04, 2005

O primeiro trauma

Eu estava nos primeiros treinamentos na arte milenar de ficar de pé e a maracutaia acontecia na cama da minha avó. Eu tinha menos de um ano e me apoiava na cabeceira da cama. Pra combinar, nesta parte do quarto, entre a parede e a cama, ficava um crucifixo gigante feito de corrente de metal, com as contas de madeira. O interruptor de luz, com alguns probleminhas estruturais, ficava enrolado no objeto de devoção.

Pra entender melhor isso, é bom explicar como era o treco numa habitação centenária. A casa, que tinha um pé-direito de uns três metros, possuia um interruptor meio precário, daqueles em que você desligava e ligava a luz num objeto parecido com os chuveirinhos dos chuveiros básicos. Apertava-se uma vez e ligava, novo aperto e desligava. E este objeto ficava solto, ligado na lâmpada só pelo fio, que por sua vez ficava junto à parede apenas por um prego. Com isso, as pessoas ligavam e desligavam com o objeto no ar e soltavam, fazendo com que ele batesse na parede a toda hora... com o tempo, esse negócio quebrava e pra se levar um choque era facim.

Voltando ao trauma, como o fio ficava enrolado no crucifixo e eu, faceiro andando pela cama, peguei no bonequim pregado na cruz e levei um choque. Como estava sozinho, as primeiras pessoas que vieram acudir, só chegaram no quarto depois que eu larguei do troço dos infernos. Como eu estava na cama deitado, chorando, pensaram que eu acabara de acordar e me vi sozinho, comecei a chorar. Talvez alguns acharam que eu havia tido um pesadelo.

Até então a história é triste, agora começa a parte engraçada: eu virava no diabo cada vez que me colocavam na cama da minha avó. Chorava, esperneava, chutava, mas não havia jeito de me deixar lá. Por enquanto a reação teve como culpa a birra que o piá do Maneco começou a desenvolver.

Como a familhagem era católica e a igreja ficava no lado da casa, ir na missa era quase obrigação e lá fui eu... Na primeira visão de um padre franciscano com um crucifixo gigante o diabo entrou no corpo do ser e a choradeira começou. O fato ainda passara batido pois o cara foi lá pro altar e eu fiquei na minha. No final, o malandrão da hoste de são chico, amigo das crianças, veio dar uma de simpático e agradar a criança conhecida. E já chegou querendo pegar no colo! Novo ataque histérico, com direito a cara roxa e tudo mais... A partir daí começaram a desconfiar do que disparava um ataque tão amalucado do gurizinho.

Após novas experiências(malditos bastardos...) descobriram que eu não podia ver um crucifixo que virava no diabo. Para minha sorte, vivíamos em uma época mais iluminada e não tentaram tirar o capeta que coro do disinfiliz na marra. Acharam por bem investigar ocorrido e logo descobriram a origem do problema. Hum... e lembro que minha mãe jurava que, grávida de mim, viu no Cine Vitória o filme 'O Exorcista'.

Primeiros momentos

Meu primeiro sete de abril começou depois de escurecer e acho que gosto de dormir tarde por este motivo. Era pra eu nascer lá pros idos de junho, mas resolvi que o troço tava ficando chato e pedi pra desembarcar antes... Depois de muito movimento, só consegui sair do aperto dez e meia da noite daquela sexta-feira. Ironia: depois de lutar por algumas horas pra sair da barriga da minha mãe, fui levado direto pra encubadora...

Saí de lá com 1,080 kg e muita fome. Alguém resolveu que a minha fome não poderia ser saciada nos seios da minha mãe e tive que brincar com outra mulher, que virou a minha mãe de leite. A filha desta mulher, que passou a ser amamentada pela minha mãe de verdade chamava-se Carla Roma Santos e foi a primeira italianinha da minha vida. Só fui reencontrá-la um tempão depois. Fizemos a sétima série juntos...

segunda-feira, outubro 03, 2005

No principio era o verbo nascer

Nasci no dia 7 de abril de 1975 e só escreverei sobre as viagens que aconteceram na minha cabeça daí pra frente... mas isso não significa que meus relatos estejam confinados ao período que compreende aquele dia frio em que atrapalhei a minha mãe no seu vício de ver novelas globais e o dia em que você acabou chegando neste trem...

Eu não acredito em vida após a morte nem em vida antes da vida, mas minha mente costuma gostar de coisas que aconteceram tanto durante o big bang quanto algum bang bang. O futuro sempre é bem-vindo. Sossegue e aproveite...